segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Menino e moço...

Há cerca de um mês foi publicado um livro muito interessante sobre um dos bairros mais típicos de Setúbal, o "bairro Santos Nicolau", que tomou o nome do proprietário dos terrenos onde foi implantado há cerca de 100 anos.

O "Bairro Santos Nicolau" no Google Earth. o Bairro é a zona
abaixo da Rua Morgado de Setúbal
(a segunda rua quase horizontal a contar do topo da imagem),
que o delimita do "Bairro da Conceição"

Como morei mais de 20 anos no bairro vizinho, o de NªSrª da Conceição ou simplesmente o "Bairro da Conceição" (um bairro de rendas económicas inaugurado em 1949), a zona é-me familiar e não hesitei em comprar o livro para reviver alguns dos momentos da minha meninice e adolescência.
A geografia social da zona era simples: no "bairro Santos Nicolau" moravam os pescadores e outros profissionais da "classe baixa" e no "Bairro da Conceição" morava uma "classe média" em nascimento, de funcionários públicos ou de serviços, "de luva branca" e mãos limpas, e de pequenos empresários.

Ontem, mais chateado que um peru em véspera de Natal, resolvi fazer o que já me tinha proposto fazer desde que comprei o livro: folheando-o, ir de carro percorrendo as ruas do bairro e tirar algumas fotos para comparação do ontem e do hoje já que no livro há várias fotos antigas.

A capa do livro é a que se vê abaixo e reproduz uma cena que consta da minha memória: duas crianças, filhas de pescadores (a maior parte dos habitantes originais do bairro eram pescadores vindos da zona da Ria de Aveiro cujas mulheres trabalhavam nas fábricas de peixe de Setúbal, na zona das Fontaínhas, ali ao lado), estão sentadas nas "escarpas de Santos Nicolau" olhando a doca de pesca e o Sado.

 
Percebe-se que são filhos de pescadores pelo padrão das camisas, aos quadrados tal como as dos seus pais e que ainda hoje são "imagem de marca" das gentes ligadas ao mar na minha terra. Quantas e quantas vezes eu próprio me sentei ali a ver o mar e o movimento da doca de pesca. "A minha alma cheira a choco" desde então e daí o apelo que o mar sempre fez sobre mim. Tanto mar...
Ontem tentei captar exactamente a mesma paisagem da capa do livro. O resultado pode ser visto abaixo e com pequenas alterações corresponde à imagem do livro.
 
 
Note-se que na foto da capa a fumarada que se vê na Arrábida, junto ao mar, era originada pela fábrica antiga da SECIL enquanto que nesta ela é produzida pela fábrica nova desta empresa de cimentos, contruída um pouco mais para o interior da serra e não à beira mar como a antiga.
 
E o passeio continuou comigo buscando o local onde funcionou a "escola da menina Adelaide". A "menina Adelaide" era uma mulher alta, perfeita, quase bonita, alourada, mulher de pescador e era visita assídua da casa dos meus pais, ambs professores, sendo que a minha mãe era a "professora oficial" de muitas das garotas que de tarde iam para a "escola da menina Adelaide" fazer os trabalhos de casa e, no fundo, receber "explicações". Se a memória não me falha tratava-se de um salão (nome um pouco pomposo para a construção em causa...) meio abarracado em que caberiam, em bancos corridos, uns 30-40 alunos que ali passavam algumas horas.
No bairro havia outras "escolas" do mesmo género, numa demonstração curiosa da importância que naqueles tempos --- ora deixa cá ver, António... Huuummm!... Há uns 55 anos, mais coisa menos coisa... --- os pais-pescadores punham na educação dos filhos, ambicionando para eles uma vida menos dura do que a que eles tinham, eventualmente o acesso à "escola comercial e industrial" para terem uma formação mais qualficada que os levasse a trabalhar em profissões melhor remuneradas nas fábricas de conservas de peixe (ou outras) em que as mulheres trabalhavam.
 
Claro que a "escola da menina Adelaide" --- boas pescadas "arrepiadas", que a minha máe dependurava do contador da água, na cozinha, comi eu à conta da amizade dela com os meus pais... --- já não funciona há muito e a própria casa (pelo menos a fachada) está algo remodelada e bem conservada.
 
 
 
E a volta continuou. Inesperadamente dei com o único sobrevivente de alguns moinhos que existiam na zona. O que fotografei é, salvo erro, o que na foto antiga surge mais à direita.
 

 
 
Não quis deixar o bairro sem revisitar dois outros locais onde ia muitas vezes por aí se situarem as principais mercearias que serviam os dois bairros contíguos e na "fronteira" entre ambos: a do "sr. Izidro" e a do "sr. Américo".
A primeira deu há muito lugar ao "Izidro dos Frangos" e ao Hotel Izidro, ambos da famíla do antigo merceeiro. Perto da porta da mercearia, que tinha taberna ao lado --- parece que estou a ver as pipas e as salgadeiras com as caras de bacalhau e o grão demolhado... ---, estava a porta do barbeiro do bairro onde fui muitas vezes e junto desta sentava-se, todos os dias, uma das figuras típicas do bairro: a "Ti Ch'nela".
Era uma mulher sempre vestida de preto --- as mortes, na época, eram frequentes e uma vez viúva o luto era para o resto da vida... --- que, sentada no chão, vendia amendoins, castanhas assadas, tremoços, pevides e outros "acepipes" semelhantes. Claro que era uma das "bancas" mais frequentadas do bairro...
 
A mercearia do sr. Américo, muito mais pequena e menos frequantada que a do Izidro, tinha a vantagem de ser paredes-meias com o antigo mercado/praça local. Eu era frequentador assíduo da mercearia onde os meus pais compravam e pagavam no final do mês, ficando tudo assente no "rol", um livro estreito e alto, talvez um pouco mais alto que uma folha A4.
 
A mercearia do Sr. Américo era na porta da direita
e o mercado ficava no terreno à direita do prédio
 
Com o Sr. Américo se passou uma das cenas "épicas" da minha meninice... Coleccionar dos "cromos da bola" (1 tostão cada rebuçado com um cromo, lembram-se?), um dia, teria eu uns 6-7 anos, apanhei a jeito o meu mealheiro de barro e com uma faca consegui sacar lá de dentro uma moeda de 10 escudos, daquelas de prata com a caravela. Com ela fui à corrida à mercearia e comprei quantos rebuçados com cromos podia!... Uma batelada!
Não me lembro como o meu pai deu com a patifaria e além de eu ter levado o correspondente "correctivo" --- não sei se me entendem :-) --- meteu pernas a caminho e foi pregar uma "descasca" no sr. Américo, que ficou com vontade de se esconder atrás dos seus óculos... "Ó Sr. Américo! Então você vê o gaiato com uma moeda de 10 escudos  [uma pequena fortuna na época...] e não desconfia que foram obtidos de forma mais ou menos ilícita?!... Você não devia ter vendido aquela quantidade de cromos ao meu filho!...". E lá voltei eu para casa com o rabo entre as pernas...




3 comentários:

  1. A tua veia de escritor...
    Bem gira a tua narração. :)

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  2. Uma delícia de ler. Pena não estar aí por perto, dá vontade de te acompanhar nestas andanças.

    Luisa

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  3. Obrigado pela descrição e as memórias, particularmente agradáveis de ler num dia de Natal. O meu bairro era do outro lado da cidade, mas como tinha vários amigos espalhados pelos diferentes bairros, incluindo no Bairro da Conceição, costumávamos frequentemente correr a cidade inteira a conversar (peripatéticos...). Um abraço.

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